segunda-feira, maio 26, 2014

“Benditas coisas que eu não sei... Os lugares onde não fui... Os gostos que não provei... Meus verdes ainda não maduros... Os espaços que ainda procuro... Os amores que eu nunca encontrei... Benditas coisas que não sejam benditas... A vida é curta... Mas enquanto dura... Posso durante um minuto ou mais... Te beijar pra sempre o amor não mente, não mente jamais... E desconhece do relógio o velho futuro... O tempo escorre num piscar de olhos... E dura muito além dos nossos sonhos mais puros... Bom é não saber o quanto a vida dura... Ou se estarei aqui na primavera futura... Posso brincar de eternidade agora... Sem culpa nenhuma”. “Benditas”, de Mart’nália e Zélia Duncan


"Às vezes quando, abatido e humilde, a própria força de sonhar se me desfolha e se me seca, e o meu único sonho só pode ser o pensar nos meus sonhos, folheio-os então, como a um livro que se folheia e se torna a folhear sem ter mais que palavras inevitáveis. É então que me interrogo sobre quem tu és, figura que atravessas todas as minhas visões demoradas de paisagens outras, e de interiores antigos e de cerimoniais faustosos de silêncio. Em todos os meus sonhos ou apareces, sonho, ou, realidade falsa, me acompanhas. Visito contigo regiões que são talvez sonhos teus, terras que são talvez corpos teus de ausência e desumanidade, o teu corpo essencial descontornado para planície calma e monte de perfil frio em jardim de palácio oculto. Talvez eu não tenha outro sonho senão tu, talvez seja nos teus olhos, encostando a minha face à tua, que eu lerei essas paisagens impossíveis, esses tédios falsos, esses sentimentos que habitam a sombra dos meus cansaços e as grutas dos meus desassossegos. Quem sabe se as paisagens dos meus sonhos não são o meu modo de não te sonhar? Eu não sei quem tu és, mas sei ao certo o que sou? Sei eu o que é sonhar para que saiba o que vale o chamar-te o meu sonho? Sei eu se não és uma parte, quem sabe se a parte essencial e real, de mim? E sei eu se não sou eu o sonho e tu a realidade, eu um sonho teu e não tu um Sonho que eu sonhe?
Que espécie de vida tens? Que modo de ver é o modo como te vejo? Teu perfil? Nunca é o mesmo, mas não muda nunca. E eu digo isto porque o sei, ainda que não saiba que o sei. Teu corpo? Nu é o mesmo que vestido, sentado está na mesma atitude do que quando deitado ou de pé. Que significa isto, que não significa nada?"

"Nossa Senhora do Silêncio"
Bernardo Soares
(heterônimo do poeta português Fernando Pessoa)
"Livro do Desassossego" (Ática, 1982)

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